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Contos-->O casamento da filha -- 29/02/2000 - 10:24 (Enói Renée Navarro Swain) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O CASAMENTO DA FILHA



Às 11h30 da noite, dona Augusta entrou no quarto do casal e ficou a olhar o marido que dormia, roncava e assobiava, quase ao mesmo tempo. O assobio era bem comprido, com jeito de bomba que cai do céu. O ronco depois : fiuuu...rrrrrrrr! Daí uma pausa. De novo o assobio até expelir todo o ar. E o ronco de novo. Sempre igual.
Sem querer, veio-lhe à memória uma frase da heroína de “O Primo Basílio”, de Eça de Queirós. “E foi com essa figura que eu me ralei!” Então era aquele o homem com quem casara, esbelto como um toureador espanhol, que até havia representado o papel de Cristo, numa peça de teatro amador. Que os cabelos negros e crespos tivessem desaparecido, vá lá. Mas o resto?
Na nuca formavam-se duas pregas de banha. O queixo tornara-se duplo. O estômago proeminente, sob a colcha. Comida em excesso, cerveja ou whisky todo dia, nunca andar a pé era a receita.
Com tanta gordura, poderia ter uma coisa qualquer, não queria que ele morresse. Uma onda de ternura assaltou-a. Era o velho e terno companheiro de tantos anos.
Então resolveu cortar um assobio que já vinha em meio, sacudindo o assobiador.
-- Acorde, Afonso! Acorde! Deixe de roncar! Vamos conversar um pouco.
--O que foi? Aconteceu alguma coisa? perguntou ele, assustado.

Sentou-se na cama ,de repente, os olhos congestionados.
-- Não ,homem! Não foi nada de ruim. Até uma coisa boa: João Carlos pediu a Bete e quer se casar. O mais depressa possível.
-- Você vem me acordar no melhor do sono, só pra dizer isso? E não acha que já era tempo, depois do "pensionato" em nossa casa? Almoçando, jantando e quase dormindo aqui? E agora me deixe dormir. Amanhã entro cedo no trabalho.
-- Os homens são esquisitos, exclamou ela. A filha vai casar e ele nem se interessa.
-- Mas o casamento não é amanhã? Ou é?
-- Mas não é UM casamento. É O casamento de nossa filha!
-- E daí?
-- Está bem. Durma que é melhor.
Afonso cobriu-se de novo e caiu logo no sono, outra vez, ocupando dois terços da cama do casal, como era seu costume.
Dona Augusta preparou-se para dormir. Depois do banho, prendeu o cabelo, mecha por mecha, naqueles rolos que machucavam tanto. Bete já havia subido para o seu quarto. As meninas gêmeas, há muito dormiam.
E, no escuro, se pôs a pensar : Preciso terminar o enxoval da Bete. Ainda bem que faltam poucas coisas: Travesseiros e cobertores, isto bem podia ser obrigação do noivo. E tenho que mandar fazer o vestido dela, o meu, e das gêmeas. E uma roupa nova para o Afonso. Camisa bonita, ele tem. Tudo isso vai custar muito dinheiro. Sem falar na recepção. Mas, a primeira coisa, mais urgente, é que amanhã a Bete vai visitar os pais dele e depois de amanhã eles vêem aqui. Preciso oferecer um almoço. Não, um jantar é melhor. Quero que eles pensem que nossa filha não é uma coitada, só porque o pai é um promotor e não empresário como o pai dele. Agora é em-pre-sá-ri-o Antes, quando pobre, era dono de serraria. Não faz mal. Pelo menos, nossa filha não vai passar o que eu passei. O pobre do noivo é feio, compridão, mas, ela achou bom, e eu, é que não vou dizer nada. E marido bonito pra quê? Quando dá pra murchar, é tudo a mesma coisa. Olhe o meu. É homem culto, inteligente, me orgulho dele, é claro. Mas, dinheiro que é bom!... É receber, pagar tudo e ficar de novo à espera do fim do mês. Bete vai ter de tudo. Ele, apesar de feio, é de uma família boa, fino e rico. Ela é uma menina bem educada, freqüenta a melhor sociedade. De minha parte, meu avô era escritor respeitado. Bete não tem do que se envergonhar. Vai dar certo, se Deus quiser. Não devo me preocupar.
Apagou a lâmpada, mas nada de sono. O cérebro ativo, não deixava dormir. O pensamento pulava como bolinha de pingue-pongue, de um assunto para outro, e depois voltava para o primeiro.
O ronco do marido, como incomodava! Tateou no escuro até acertar-lhe a garganta. Apertou um pouco o pescoço e o ronco parou. Deve ser aqui a sede do ronco.
Não, não é. Logo recomeçou de novo. Vou tapar a boca. Não adianta. Talvez, se eu pusesse a mão no nariz. Experimentou. O marido acordou, louco da vida:
-- E agora? Quer me sufocar dormindo? Tire essa mão daí!
Afinal, Dona Augusta dormiu, quando a madrugada chegou de mansinho, diluindo a treva.
No dia seguinte, Bete,com medo ,fez visita aos futuros sogros e tudo correu bem. Na noite marcada, os pais do noivo vieram para o jantar.
Dona Augusta olhou mais uma vez a toalha da Ilha da Madeira, os cristais, as flores, a louça inglesa que fora da vovó. E depois disse ao marido:
-- Que bom que as gêmeas estão passando as férias na casa do avô. Preciso recomendar a você: Não vá ofender os pais do João Carlos. Você sabe que são católicos praticantes, gente onservadora, que fez a vida no interior. Aparentados com o Governador. E é melhor você não puxar assunto de religião nem de política.Não se ponha a falar mal de padres, de freiras, do Papa e nem do governo.
O marido ironizou:
-- Bem, posso falar sobre “A influência de Sartre sobre a juventude atual” ou “Os efeitos da radioatividade sobre a apicultura”. Ou então “O sr. prefere Cecília Meireles ou Helena Kolody?
-- Não estou brincando. E outra coisa. Ele não bebe, não fuma, não joga e não é mulherengo.
-- E pra que um estafermo desses quer tanto dinheiro? É bem como diz o ditado: “Deus dá nozes pra quem não tem dentes.”
-- Você está avisado. Não conte anedotas também.
-- E que tal se eu abrisse a porta e declamasse uns versos de Castro Alves para saudá-lo? Faria um lindo efeito. " Senhor Deus dos desgraçados, dizei-me Vós, senhor Deus..."
O casal logo chegou, em seu carrão Galaxi e interrompeu a conversa. Os noivos já estavam no sofá do canto, os olhos nos olhos, as mãos entrelaçadas, como cipó, cada um achando uma beleza tudo o que o outro dizia, que lindo se fosse sempre assim, pena é que não dura.
Boa noite, muito prazer, o prazer é nosso, estejam à vontade, sentem ali que é mais confortável, João Carlos não me disse que a senhora era tão moça, dê-me a bolsa.
Logo um silêncio. Os noivos no seu mundo particular, não tomavam conhecimento da conversa.
Daí os dois homens falaram ao mesmo tempo:
-- Que calor, não?
Dona Augusta acudiu:
-- É. A noite está quente e agradável.
A visita comentou:
-- Muito. É raro em Curitiba uma noite assim.
-- É mesmo. E pensou: não quero falar sobre o tempo. Nem a respeito de crianças e criadas que é assunto cri-cri. Também, vou falar sobre o quê?Ah! Já sei.. Ela toca piano. Vou perguntar do festival de Música. E ouviu o que o marido dizia:
-- Então nossos filhos se encontraram... E pensava: não posso oferecer cigarros, nem whisky, pra puxar conversa. Esse homem tem uma cara de dor de barriga. Eu podia era oferecer um chazinho de erva-doce, bem quente. “O senhor aceita um chá de erva-doce? “Por que?”. “Porque o senhor tem cara de dor-de-barriga”.
O pai de João Carlos que nada sabia do chá, exclamou:
-- O senhor tem uma casa muito confortável. E num bairro sossegado. É sua? E para si mesmo: toda atapetada, cortinas de luxo, espelhos, cristais, quadros... Com ordenado de promotor? Deve viver endividado!.
-- Ah! Sim (já sei que tenho que dar tudo sozinho. Desde o apartamento para os noivos até a geladeira e a televisão).
-- Gostamos muito de seu filho, a senhora sabe? aparteou Dona Augusta (feio como o Pinóquio.Mas o coitado não tem culpa. Saiu com o nariz da mãe).
-- Verdade? (Não sei o que meu filho viu nessa moça. Parada, morta, sem vida. Mas, antes assim do que espevitada como a mãe).
Dona Augusta continuou:
-- Soube que a senhora viaja muito (Que bom! Assim não vai se meter na vida do casal. Meu Deus! A velha tem ,no dedo, um brilhante que é uma tocha! Só para se mostrar).
-- É certo. Aqui faz frio o ano inteiro e eu não me dou com esse clima. (E tem a cara lisa, sei que já fez mais plásticas que a Dercy Gonçalves).
-- Eu soube que a senhora é "meia" escritora, não é?
-- Eu escrevo para um jornal e já publiquei dois livros. (Não sou "meia", nem meio escritora, ouviu, sua ignorante? Porque não perguntou logo: a senhora que é metida a escritora?).
E a conversa foi por aí, entrando no imposto de consumo, praias, mini -saia. No meu tempo não havia essa pouca vergonha. Esta sopa está deliciosa, aceita um salgadinho, não, então uma azeitona, não... (e que tal uma estricnina?).
O jantar não demorou muito e depois beijinhos. Boa noite, apareçam lá em casa, entrem que já esfriou.
O carro não pegava, os adeuses a se repetirem, afinal, graças a Deus, foram embora.
Dentro do automóvel, a mãe de João Carlos comentou:
-- Onde nosso filho foi se meter? O tipo de gente que gasta mais do que ganha. E a moça diz que não sabe cozinhar. Filha de escritora é isso. Se a mãe fosse para a cozinha, em vez de ser metida a escritora, a filha também ia.
O marido defendeu a futura nora:
-- Isso é o de menos. Você quando casou, também não cozinhava e hoje tem cozinheira. Mas, menina que passa no vestibular também pode aprender a cozinhar, coisa que você ensina pra suas cozinheiras em dois tempos. É só ter vontade. E pelo jeito, ela gosta de João Carlos, isso é o principal.
-- Também pudera! Um partidão como nosso filho! Rico, bonito. Ele bem podia ter achado outra que fosse rica também.
-- Pobreza não é defeito.
-- Como não? Pobreza é mais que defeito. É desaforo.
-- E acaso riqueza traz felicidade? Nós ,quando pobres, éramos felizes. Agora só vivemos juntos por causa de nosso filho. Você mudou.
-- E daí? Eu prefiro chorar numa Mercedes do que numa carroça.
-- Não adianta, melhor eu ficar quieto.

Na casa da noiva, dona Augusta comentava:
-- Quando penso que vamos ficar parentes daquela velha! Ignorante e emproada. Quem te viu e quem te vê! Pobre, quando fica rico, é pior que rico.
Ao que Afonso respondeu:
-- Com o tempo é capaz que a gente acabe tolerando. E depois, eles não vão ficar em nossa casa, nem nós na casa deles. O velho é meio burrão, mas parece que não é má pessoa. Acho que a única leitura dele é o jornal.
-- Ela, então, nem lê. Contou que não perde uma novela.
-- Você sabe como é aquela frase: “Amigo é a amizade que o coração escolhe .Parente é a amizade que o dever obriga”.
-- Bem eu já fiz minha parte. O jantar saiu bom. O strognoff estava gostoso, a salada ótima, a sobremesa também. Agora é terminar o enxoval e pensar no casamento e na recepção. Eu queria ir dormir, mas o noivo continua na sala. E a nossa filha, olhando para aquela cara de bocó, de Luiz XIV, como se fosse a do Clark Gable.
-- Eu não sei porque, vocês, as mulheres, fazem tamanho barulho por um casamento. Incomodam meio mundo. Um convite de casamento é uma brecha no orçamento de um pobre chefe de família. E o presente. E ainda vestido, sapato, bolsa, e não sei que mais para a mulher e as filhas. Devia ser como nos Estados Unidos: O casal está noivo, os pais de acordo? Um belo dia eles saem de casa e voltam casados.
-- E você pensa que eu não gostaria que fosse assim? Além de gastar o que a gente não pode, ainda há a recepção, porque os pais dele fazem questão.
-- Se fazem tanta questão, podiam fazer a festa em casa deles.
-- Ah! Isso não. Para depois o moço dizer: Você era uma pobre coitada , pois até a festa do casamento foi em minha casa.
-- Pois , então, vamos fazer os convites só para a igreja. Rico não dá festa. Pobre é que vai dar? Vou ter que fazer um empréstimo e levar um ano pra pagar. Só por causa do casamento de minha filha! E sabe o que mais? Vou dormir. É a única hora em que um homem pode esquecer suas preocupações de pai-de-filha-noiva.
-- E eu? Você pensa que é brincadeira tudo o que tenho de pensar : vestido de noiva, grinalda, véu, luvas, buquê, ornamentação da Igreja...
-- Você pensa. E eu pago.
E nos meses seguintes entravam pacotes e caixas sem parar. E cada um que entrava o pai da noiva sentia um aperto.

Chegou afinal o dia do casamento, ande depressa, está na hora, será que as meninas ainda não estão prontas, quem é que vai na frente, e como a noiva está linda, jogue o buquê, chuva de arroz, gritinhos, a recepção, ai que sapato apertado, pague os garçons, champanhe está no fim.
Afinal, se foram os recém-casados.

O marido colocou o braço, amorosamente, no ombro da mulher, comentando:
--Mulherzinha, finalmente vamos dormir em paz! Acabou-se!
--Não, meu querido. Esqueceu do casamento da gêmeas?







(conto escrito em 1976, publicado na "Antologia Didática de Escritores Paranaenses",de América Sabóia e Hellê Vellozo Fernandes)


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